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Já não há amores assim...

Quarta-feira, 30.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XII)
... “Quando as grandes portas se cerraram, pesadas e tristes, por detrás do vulto doloroso da mãe, Mariazinha, noiva-menina dum noivo-morto, olhou em volta e sorriu.
Todo o tempo que durou o seu noviciado, foi a mais obediente, a mais humilde, a mais submissa de todas. As mestras não tinham palavras para lhe elogiar a doçura, a docilidade; e era tão profunda a paz que em seu redor irradiava, que a própria superiora, severa e ríspida, esboçava um eflúvio de sorriso quando a via passar, branca e frágil, pelos longos corredores escuros. Foi como se num sombrio convento de Toledo tivesse entrado, pela primeira vez, um raio de sol de Portugal.
E a Mariazinha passava os dias a sorrir e a murmurar às vezes umas palavras sem nexo, uma estranha toada de oração que ninguém entendia. Na cerca gostava de se sentar num banco sob um dossel de vinha virgem que há muitos anos se abraçava ao tronco carcomidfo de uma acácia velha. Contemplava-lhe as folhas, jóias cravejadas de rubis, os dedos que se crispavam no tronco musgoso... e sorria enlevada, pendendo as mãos no regaço.”...                               continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:03

Já não há amores assim...

Terça-feira, 29.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XI)
...”Um dia, vendo-a morrer assim aos poucos, os pais cederam de repente. Mariazinha, quando soube, chorou pela primeira vez e, encarando a mãe, com as lágimas a correrem-lhe em fio pelas faces, balbuciou: «- Coitadinha!»
Escolheram um convento de Toledo, onde a regra não era muito apertada nem muito severa.
A mãe até tinha medo de a ver morrer no caminho. Levaram-na como quem acompanha uma filha morta ao túmulo onde há-de ficar. E, ela, perdida novamente na sua extática imobilidade de figurinha de cera, atravessou os fartos vales portugueses, os desolados campos de Castela, sem parecer ver nada à sua volta.
Chegou a Toledo numa manhã de chuva. A cidade, monástica e triste, parada na evolução dos séculos, tão curiosa com as suas ruas estreitas e tortuosas, os seus arcos, as suas escadinhas, o seu ar severo de monja, não lhe mereceu um olhar. Não a viu.
Ao separar-se da mãe, horas depois, repetiu apenas, a chorar, a mesma palavra que lhe viera aos lábios naquele dia em que soubera que entraria no convento: «- Coitadinha!»”...                     continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:54

Já não há amores assim...

Segunda-feira, 28.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (X)
 
...”O pai e a mãe inquietaram-se por fim.Interrogaram-na, e com lágrimas e súplicas pediram-lhe que falasse, que dissesse o que tinha, o que queria, o que queria que eles lhe dessem, que eles lhe fizessem para a prender na Terra. Tudo lhe fariam, tudo lhe dariam. Que ela pedisse tudo. Estavam prontos a fazer por ela todos os sacrifícios.
Foi então que Mariazinha, noiva-menina dum noivo-morto, disse, pediu o que queria: queria ir para um convento. «Isso não! Nunca!», clamaram os pais, numa revolta de toda a sua alma. Fora então para isso que a mãe a trouxera nas suas entranhas, que a alimentara aos seus peitos, que a embalara nos braços tantos anos! Fora então para isso que o pai lhe amparara os primeiros passos, que lhe arrancara do caminho todos os espinhos para ela passar! «– Isso não! Isso nunca!».
 Passaram dias, meses, passaram dois anos. O rosto miudinho era uma pétala de camélia, todo o corpito de ave um flocozinho de neve. Continuava a ir à grade onde ficava horas e horas a sorrir, de olhos baixos, com as mãos a tremer, num enleio de amor que não era deste mundo..”          continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:29

Já não há amores assim...

Domingo, 27.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (IX)
... “Mariazinha não percebeu nem tão pouco disse nada. Encerrada em si mesmo como um cofre selado, foi um túmulo fechado e mudo, onde as revoltas e os gritos, as censuras e as carícias iam despedaçar-se em vão.
http://www.youtube.com/v/kLaEC2jygRU&hl=en"></param

À noite viam-na vaguear, horas e horas, sozinha, pelas ruas do jardim, sem se voltar, sem um gesto, sem um olhar de interesse pelas coisas, que não via. Aproximava-se depois da grade onde a vinha virgem com os seus braços teimosos continuava a enlaçar os duros varões de ferro, e ali ficava horas esquecidas, pequenina estátua de mármore sobre um mausoléu, perdida num sonho que não era da Terra. Viam-na voltar mais frágil, mais embaciada, duma palidez quase etérea. Instintivamente, procuravam-se-lhe as asas no seu corpo de ave que parecia ensaiar um voo. Os seus olhos tinham um olhar tão doce, tão desprendido das coisas deste mundo que, sem querer, a gente procurava o sítio onde ela ia poisar.”... continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:12

Já não há amores assim...

Sábado, 26.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (VIII)
... “Mas um dia vieram dizer-lhe que ele tinha morrido. Morreu... pronto! Morreu. Foi só isto, Mariazinha. E depois?

Depois... disseram-lhe, para a consolar, que ele tinha morrido como um herói, o corpo envolto na couraça, a cabeça cingida no elmo dos modernos cavaleiros andantes; que tinha o túmulo que merecera a sua grande alma ousada; que era preciso sacrificar, de vez em quando, o mais alto, o mais digno, para aplacar as cegas cóleras da Natureza a quem penetram os mistérios; que a bendita semente do exemplo era precisa no mundo, para não se colher só o joio. Disseram-lhe ainda que a pátria apareceria mais alta tendo por pedestal o cadáver de um herói; que o seu audacioso e impávido coração de trinta anos era mais precioso, imóvel e silencioso, que as suas fortes mãos de lutador, que domara e vencera os elementos e as forças más da Natureza, eram mais fortes na morte."...                    (continua)                       
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 10:37

Abril, sempre

Sexta-feira, 25.04.08

   

     25 de ABRIL, SEMPRE

 

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publicado por Filomena às 10:28

Já não há amores assim...

Quinta-feira, 24.04.08

As orações de Soror Maria da Pureza (VII)

... ” « - Por que te calas? Não dizes nada? Fecha os olhos como uma criancinha que quer dormir. Deixa-te estar assim meu amor! Indigno sacrário que recolhe os teus gestos de beleza, só de joelhos devia ver-te sonhar. Indigno pecador, como foi que te mereci?! Para te pagar as horas inefáveis que das tuas mãos recebo, as horas de paz que deixas cair sobre o mundo, toda a minha alma em preces, de joelhos, de mãos postas, não é o bastante, Maria! Por ti deixar-me-ia sacrificar, as chagas das minhas mãos seriam purificadas pela fímbria do teu vestido.

   

 

Estas grades de ferro defendem-te do hálito de toda a minha impureza, como as grades de prata que encerram, longínqua e puríssima, uma Virgem da minha terra. Não me atrevo a tocar-te: as minhas mãos seriam queimadas como as de um sacrílego. Para dizer as letras do teu nome, como quem passa as contas de um rosário, confesso primeiro os meus pecados para não blafesmar, Maria! Porque te calas? Tens medo da noite, meu amor?»

   

 

Mariazinha mexia os lábios como quem murmura mas não dizia nada. As mãozitas dobravam-se-lhe no regaço, como hastes que têm sede, ao ardor do sol do meio-dia. E todas as noites daquele ano em que não houvera Inverno, o namorado, encostado às grades, rezara a litania da sua puríssima paixão.”...                (continua)

 

in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:35

Já não há amores assim...

Quarta-feira, 23.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (VI)
... “Mariazinha sorria calada, e o sorriso iluminava-a toda. Junto à grade, o vestido era uma opala a desmaiar...
«- Não dizes nada? Porque te calas? Não há ninguém que nos oiça! E quem nos entenderia? As minhas palavras só podem ungir os teus ouvidos, óleo santo que os teus sentidos recolhem como um orvalho do céu. Gosto tanto de ti! O meu amor já veio comigo quando eu nasci, entrou-me no peito como uma pomba e lá fez o ninho! Na minha boca andou sempre o teu sorriso, nos meus olhos o teu olhar, e foram os teus pés, maravilhosas flores de brancura, que traçaram a pétalas o caminho para eu vir ter contigo. Andei anos a procurar-te a achei-te! Procurar-te era achar-te já. Estavas comigo em espírito, divino espírito que se fez carne para me salvar! Maria!»
      
Mariazinha cruzava as mãos brancas no peito, num gesto brando, magoado e tímido; parecia uma andorinha que, ao cair da noite, no beiral onde tem o ninho, recolhe as asas apaziguada e contente.”...                                                                                       (continua)                                               
in “AS máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 10:51

Já não há amores assim...

Terça-feira, 22.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (V)

... “Mariazinha tão pura ! Em vão o jardim voluptuoso multiplicava todas as suas seduções, desvendava todos os seus segredos numa febre ansiosa de tentar; em vão espalhava na noite luarenta todas as suas jóias numa prodigalidade de avarento que, numa hora de demência, resolve atirar com todos os seus tesoiros à rua; em vão queimava por ela todos os arómatas, em caçoilas de prata e urnas de cristal, no coração das flores. A vinha virgem agarrava-se com mais força, prendia mais os dedos, num espreguiçamento voluptuoso, lânguido e firme, doce e brutal, ao duro ferro das grades.

O vento sacudia a cabeleira solta das árvores, que no escuro ondeavam como jubas de feras. Mariazinha sorria. A sua carne era como a carne das rosas, que mesmo aos beijos do sol fica fria. A rubra e ardente poesia da noite sensual fazia realçar ainda mais a límpida candura da virgem. O namorado, encostado às grades, dizia-lhe: «- Quando te vejo vir ao longe, tenho vontade de te rezar: Avé Maria, cheia de graça... Maria! Toda tu és luz e iluminas-me, toda tu és clarão e incendeias-me! Toda tu és expressão e alma imaterial; as tuas formas são espírito revestindo outro espírito, como um manto de rendas sobre um vestido de prata. O teu olhar é mais profundo que os teus olhos, a tua boca é mais pequenina que o teu riso. Tu não poisas os pés no chão, eu bem vejo como tu andas, Maria! Vens para mim, da escuridão da noite, num andor coberto de açucenas, como uma aparição, e as flores do jardim acorrem todas à tua passagem, recolhidas e graves, à beira do caminho, de mãos postas, rezando: Avé Maria, cheia de graça, como se passasse uma procissão...!»” ...                  (continua)                                               

in “AS máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:13

Já não há amores assim...

Segunda-feira, 21.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (IV)
... “Pois naquele ano, quando o namorado a via aparecer ao longe, no

umbral da porta envidraçada, descer os degraus de mármore do terraço, surgir na grande avenida do jardim em direcção às grades, muito branca, muito leve, quase imaterial, o seu desejo era cair de joelhos, como a uma aparição e rezar. Mariazinha de quinze anos, quase um bebé, e já uma senhora!

O oval alongado daquele rosto de madona, aquele olhar ingénuo de menina-donzela, os cabelos lisos, sem uma onda, a emoldurar-lhe de oiro a face branca, aquele seu ar reflectido e tímido, todo aquele conjunto era de uma tal candura, de uma tal pureza que, ao vê-la, a primeira impressão de toda a gente era de piedade: - Meu Deus, não lhe façam mal! Não lhe toquem... olhem que a desfolham...
O namorado, encostado às grades onde a vinha virgem se enlaçava, via-a vir e sorria enlevado.                                                  

Mariazinha de quinze anos, quase um bebé, e já senhora! Para os seus desiludidos trinta anos, ela era uma noiva-menina que Deus lhe dera para trazer ao colo. Via-a tão pura que não ousava estender a mão com medo que se esvaísse, via-a tão frágil que não se atrevia a tocar-lhe com receio que ela se esfolhasse... O seu cumprimento era todas as noites um sorriso.” ...                                                         (continua)
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 14:24


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