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Já não há amores assim...

Terça-feira, 06.05.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XVII, último)
  
... “Orações de amor, sacrílegas, blasfemas orações de pecado, a um noivo-morto, rezadas num convento de Toledo, aos pés dos altares, por bocas puras, que estranhas orações de pecado!...
  
De pecado?... Não... que Soror Clara das Cinco Chagas, a severa e ríspida superiora , ao ouvi-las rezar um dia por uma das pequeninas na capela do Sagrado Coração, dissera suavemente, erguendo os olhos ao céu:
- Sagrado Coração do Senhor, ouvi-a!”
  
 
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 10:34

Já não há amores assim...

Segunda-feira, 05.05.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XVI)
... “No convento cada vez se dizia com mais insistência que Soror Maria da Pureza era santa. Tinha êxtases e visões. Mal poisava os pés no chão, não comia, não se deitava. De noite estendia os braços em cruz, e sorria. O velho capelão curvava-se reverente quando ela passava, quase imaterial, pelos corredores escuros.. Tinha o andar baloiçado e sereno de quem caminha no andor em procissão.. Resplandecia. Parecia feita de luz.
   
Uma das pequeninas dizia ter visto a velha acácia, que já não dava flores, deixar cair pétalas no chão aos pés da vinha virgem, uma tarde em que Soror Maria da Pureza lá rezara uma oração.
E no plácido silêncio dos claustros, onde o gorgeio do veiozinho de água continuava a afagar os lírios roxos, no coro onde os vitrais transformavam, como alquimistas, o sol em pedras preciosas, na cerca cheia de murmúrios e risos de passarinhos, na igreja onde Nossa Senhora da capelinha cheia de luz continuava dia e noite a sorrir ao menino que lhe estendia os braços, no banco, sob o dossel da vinha virgem, por toda a parte, enfim, Soror Maria da Pureza, indiferente a tudo, cada vez mais exangue, mais frágil, mais luminosa, continuava a rezar as suas orações, que andavam de boca em boca e que eram mais lindas e mais ferverosas que as de Santa Teresa.” ...                            continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 10:23

Já não há amores assim...

Domingo, 04.05.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XV)
    
... “«- Sim, as tuas palavras só eu as posso entender, só podem ungir os meus ouvidos, óleo santo que os meus ouvidos reconhecem como um orvalho do céu. Amo-te e adoro-te. Quando nasci, também já nasceste comigo; foram os teus divinos passos, que ouvi quando fui ao teu encontro, que traçaram no chão este caminho de flores.
   
Se me encontraste foi porque eu te procurava, porque os meus braços em cruz se estendiam – para a tua presença. Já estava contigo em espírito, espírito eleito, essência perfeita e invisível que se fez carne para me salvar.»
As monjas decoravam as palavras que andavam já de boca em boca, que as mestras ensinavam às educandas, que eram rezadas por todas, aos pés dos altares com o maior fervor e devoção.
«- Indigna pecadora, como foi que eu te mereci?! Indigno sacrário, onde misericordiamente deixas cair o mel das tuas palavras de amor! Toda a minha alma em preces, de joelhos, de mãos postas, não é bastante para te pagar o bem que sobre mim desce das tuas mãos abertas, a altura a que me elevas, o êxtase em que vivo a esperar-te. Bendito sejas! Por ti, deixar-me-ia cruxificar, o sangue das minhas chagas beijá-lo-ia para resgatar os meus pecados.
Não tenho medo da noite, meu Amor: a noite é que te traz no seu manto estrelado. Não me atrevo a estender para ti as minhas mãos, teria receio de me queimar no fogo abrasador do teu divino amor por mim. Tenho medo de blasfemar quando passam pelos meus lábios, como as contas de um rosário, as letras do teu nome; tenho medo de as não ungir com todo o fervor da minha devoção.»” ..                           continua
   
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:27

Já não há amores assim...

Sábado, 03.05.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XIV)
... “Soror Maria da Pureza parecia-se com a Mariazinha, com a noiva-menina dum noivo-morto, como duas gotas de água caídas da mesma fonte, como dois raios de Sol tombados na mesma flor, mas não era ela. Não, não era ela...
  
Pelos claustros, onde se ouvia o gorgeio dum veiozinho de água que se perdia numa moita de lírios roxos abandonado, Soror Maria da Pureza sorria e falava.
As outras monjas ouviam-na, ficavam-se enlevadas a escutar: «Porque me calo?» dizia ela.
«- Avé-maria, cheia de graça... Se a minha luz te ilumina, se o meu clarão te incendeia, tu és o sol que se reflecte em mim. As minhas formas foram criadas, assim imateriais, para que revestissem um espírito onde tu és amor e adoração, como um manto de rendas sobre um vestido de prata. Quando eu passo, as flores acorrem todas à beira do caminho, recolhidas e graves, de mãos postas, a incensar-me, para que eu seja toda pureza ao aproximar-me de ti. Avé-maria, cheia de graça!»
Começou a correr com insistência no convento, entre as freiras e as educandas, que Soror Maria da Pureza compunha orações mais lindas, mais fervorosas que as orações de Santa Teresa. Todas as monjas corriam a ouvi-la quando no seu banco, onde a vinha virgem se enlaçava ao tronco carcomido duma acácia que já não dava flores, balbuciava, sorrindo, com as diáfanas mãos em cruz no peito.” ...         continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 09:51

Já não há amores assim...

Sexta-feira, 02.05.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XIII)
 
... “E assim passaram longos meses, e chegou o dia em que a Mariazinha professou. Sob o hábito, que lhe ficava tão bem como um vestido de noivado, tinha estranhas parecenças com uma Nossa Senhora do convento que, numa capelinha cheia de luz à direita do altar-mor, sorria a um menino que lhe estendia os braços.
Nessa noite, quando Mariazinha entrou na solidão da sua cela branca, quando se deitou na dura enxerga que devia ser até à morte o seu fofo leito de penas, quando Mariazinha adormeceu, acordou Soro Maria da Pureza.” ... continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:22

Já não há amores assim...

Quarta-feira, 30.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XII)
... “Quando as grandes portas se cerraram, pesadas e tristes, por detrás do vulto doloroso da mãe, Mariazinha, noiva-menina dum noivo-morto, olhou em volta e sorriu.
Todo o tempo que durou o seu noviciado, foi a mais obediente, a mais humilde, a mais submissa de todas. As mestras não tinham palavras para lhe elogiar a doçura, a docilidade; e era tão profunda a paz que em seu redor irradiava, que a própria superiora, severa e ríspida, esboçava um eflúvio de sorriso quando a via passar, branca e frágil, pelos longos corredores escuros. Foi como se num sombrio convento de Toledo tivesse entrado, pela primeira vez, um raio de sol de Portugal.
E a Mariazinha passava os dias a sorrir e a murmurar às vezes umas palavras sem nexo, uma estranha toada de oração que ninguém entendia. Na cerca gostava de se sentar num banco sob um dossel de vinha virgem que há muitos anos se abraçava ao tronco carcomidfo de uma acácia velha. Contemplava-lhe as folhas, jóias cravejadas de rubis, os dedos que se crispavam no tronco musgoso... e sorria enlevada, pendendo as mãos no regaço.”...                               continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:03

Já não há amores assim...

Terça-feira, 29.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (XI)
...”Um dia, vendo-a morrer assim aos poucos, os pais cederam de repente. Mariazinha, quando soube, chorou pela primeira vez e, encarando a mãe, com as lágimas a correrem-lhe em fio pelas faces, balbuciou: «- Coitadinha!»
Escolheram um convento de Toledo, onde a regra não era muito apertada nem muito severa.
A mãe até tinha medo de a ver morrer no caminho. Levaram-na como quem acompanha uma filha morta ao túmulo onde há-de ficar. E, ela, perdida novamente na sua extática imobilidade de figurinha de cera, atravessou os fartos vales portugueses, os desolados campos de Castela, sem parecer ver nada à sua volta.
Chegou a Toledo numa manhã de chuva. A cidade, monástica e triste, parada na evolução dos séculos, tão curiosa com as suas ruas estreitas e tortuosas, os seus arcos, as suas escadinhas, o seu ar severo de monja, não lhe mereceu um olhar. Não a viu.
Ao separar-se da mãe, horas depois, repetiu apenas, a chorar, a mesma palavra que lhe viera aos lábios naquele dia em que soubera que entraria no convento: «- Coitadinha!»”...                     continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:54

Já não há amores assim...

Segunda-feira, 28.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (X)
 
...”O pai e a mãe inquietaram-se por fim.Interrogaram-na, e com lágrimas e súplicas pediram-lhe que falasse, que dissesse o que tinha, o que queria, o que queria que eles lhe dessem, que eles lhe fizessem para a prender na Terra. Tudo lhe fariam, tudo lhe dariam. Que ela pedisse tudo. Estavam prontos a fazer por ela todos os sacrifícios.
Foi então que Mariazinha, noiva-menina dum noivo-morto, disse, pediu o que queria: queria ir para um convento. «Isso não! Nunca!», clamaram os pais, numa revolta de toda a sua alma. Fora então para isso que a mãe a trouxera nas suas entranhas, que a alimentara aos seus peitos, que a embalara nos braços tantos anos! Fora então para isso que o pai lhe amparara os primeiros passos, que lhe arrancara do caminho todos os espinhos para ela passar! «– Isso não! Isso nunca!».
 Passaram dias, meses, passaram dois anos. O rosto miudinho era uma pétala de camélia, todo o corpito de ave um flocozinho de neve. Continuava a ir à grade onde ficava horas e horas a sorrir, de olhos baixos, com as mãos a tremer, num enleio de amor que não era deste mundo..”          continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:29

Já não há amores assim...

Domingo, 27.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (IX)
... “Mariazinha não percebeu nem tão pouco disse nada. Encerrada em si mesmo como um cofre selado, foi um túmulo fechado e mudo, onde as revoltas e os gritos, as censuras e as carícias iam despedaçar-se em vão.
http://www.youtube.com/v/kLaEC2jygRU&hl=en"></param

À noite viam-na vaguear, horas e horas, sozinha, pelas ruas do jardim, sem se voltar, sem um gesto, sem um olhar de interesse pelas coisas, que não via. Aproximava-se depois da grade onde a vinha virgem com os seus braços teimosos continuava a enlaçar os duros varões de ferro, e ali ficava horas esquecidas, pequenina estátua de mármore sobre um mausoléu, perdida num sonho que não era da Terra. Viam-na voltar mais frágil, mais embaciada, duma palidez quase etérea. Instintivamente, procuravam-se-lhe as asas no seu corpo de ave que parecia ensaiar um voo. Os seus olhos tinham um olhar tão doce, tão desprendido das coisas deste mundo que, sem querer, a gente procurava o sítio onde ela ia poisar.”... continua
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 11:12

Já não há amores assim...

Sábado, 26.04.08
As orações de Soror Maria da Pureza (VIII)
... “Mas um dia vieram dizer-lhe que ele tinha morrido. Morreu... pronto! Morreu. Foi só isto, Mariazinha. E depois?

Depois... disseram-lhe, para a consolar, que ele tinha morrido como um herói, o corpo envolto na couraça, a cabeça cingida no elmo dos modernos cavaleiros andantes; que tinha o túmulo que merecera a sua grande alma ousada; que era preciso sacrificar, de vez em quando, o mais alto, o mais digno, para aplacar as cegas cóleras da Natureza a quem penetram os mistérios; que a bendita semente do exemplo era precisa no mundo, para não se colher só o joio. Disseram-lhe ainda que a pátria apareceria mais alta tendo por pedestal o cadáver de um herói; que o seu audacioso e impávido coração de trinta anos era mais precioso, imóvel e silencioso, que as suas fortes mãos de lutador, que domara e vencera os elementos e as forças más da Natureza, eram mais fortes na morte."...                    (continua)                       
in “As máscaras do destino” de Florbela Espanca

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publicado por Filomena às 10:37